Extradição e Delação Premiada

 

(entrevista originalmente publicada na revista "Ser Advogado", Fevereiro2008)

Revista Ser Advogado: O traficante colombiano Juan Carlos Abadia fez uma oferta à Justiça Brasileira para, com isso, ser extraditado aos Estados Unidos. Consta que ele ofereceu alta soma em dinheiro, além de se dispor a fornecer informações que ajudariam a elucidar as investigações. Essa medida, do ponto de vista legal, encontra amparo? É possível "comprar" uma extradição?

Marcelo Lamy: Em primeiro lugar, deve-se esclarecer que não existe, do ponto de vista jurídico, um “direito do acusado ou do condenado de ser extraditado”. Nosso regime jurídico prevê apenas algumas hipóteses em que se proíbe a extradição (incisos LI e LII do artigo 5º da Constituição Federal de 88 e artigo 77 da Lei n. 6.815/80). Nestes casos, poderíamos falar apenas de um “direito de não ser extraditado”.

A extradição é um instituto de cooperação internacional, estabelecido como instrumento de combate contra o crime. Evita que determinada pessoa cometa crimes em um Estado e refugie-se em outro para assim não sofrer as conseqüências merecidas. É instrumento que se coloca ao lado do asilo político ou religioso, pois a sociedade moderna não tolera a perseguição e a conseqüente punição por estes motivos.

O processo de extradição no Brasil somente se inicia com um pedido de um governo que tenha firmado tratado de reciprocidade com nosso país.

E foi isto que ocorreu. O Ministério da Justiça entregou ao STF, em 18/10/2007, os documentos que formalizaram o pedido de extradição do traficante colombiano Juan Carlos Ramirez Abadía, apresentado pelo governo dos Estados Unidos. Trata-se do processo de extradição n. 1103, cujo relator é o ministro Eros Grau.

Cabe somente ao STF, assim estabelece nossa ordem jurídica (art. 102, I, g da Constituição Federal e art. 83 da Lei n. 6.815/80), decidir o destino de Abadía. Qualquer outro juízo é incompetente para decidir sobre a extradição.

Em segundo lugar, deve-se esclarecer que Abadía é acusado no Brasil de lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e falsidade ideológica.

A lei que dispõe sobre os crimes de “lavagem” (Lei n. 9.613/98), prevê em seu artigo 1º, § 5º que o juiz pode reduzir ou deixar de aplicar eventual pena se o acusado "colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime".

Nesse contexto, Abadía, segundo as notícias, ofereceu a delação de um brasileiro que trabalharia para ele e outras três pessoas de sua organização criminosa. Inusitado foi a oferta de dinheiro caso obtivesse da Justiça agilidade no seu processo de extradição e também incomum o pedido de extinção da denúncia contra sua esposa, Yessica Paola Rojas Morales, bem como a transferência dela para São Paulo.

Ora, os benefícios previstos na lei n. 9.613/98 não atingem a terceiros. Ademais, o oferecimento de dinheiro é situação no mínimo estranha, pois confessa que há mais dinheiro ocultado que não foi descoberto pelas investigações.

Revista Ser Advogado: O pedido, conforme também noticiado, recebeu parecer favorável do Ministério Público Federal, mas o juiz do processo o indeferiu, num primeiro momento. A justiça tem, então, autonomia, para decidir questões dessa ordem?

Marcelo Lamy: É natural que o Ministério Público seja favorável, pois ao mesmo interessa desvendar a complexa operação criminosa, revelar e perseguir a punição dos demais envolvidos.

O juízo em que tramita o atual processo tem competência para reduzir ou deixar de aplicar a pena para o acusado, mas não para extinguir ou modificar a pena de qualquer outro acusado e muito menos para aceitar ou apressar a extradição, pois este último processo é julgado necessariamente pelo STF.

Ademais, o que transparece da conduta noticiada é que Abadía não está disposto a “colaborar com a Justiça” (hipótese necessária para a ocorrência dos benefícios da delação premiada), mas sim interessado em barganhar vantagens para si. Sob essa ótica, parece-nos que a oferta de dinheiro, além de anti-ética, configura tentativa de suborno.

Revista Ser Advogado: Falou-se, neste episódio, da figura da delação premiada. Qual a diferença, se é que existe, entre a oferta em dinheiro e a delação propriamente dita?

Marcelo Lamy: A “delação premiada” foi inserida em nosso sistema como forma prática de se identificar os demais co-autores ou partícipes de determinada ação criminosa. O delator, em conseqüência, recebe abrandamentos em sua pena ou mesmo a extinção da mesma. Nada mais.

A pena pode ser reduzida de 1 a 2/3 nas hipóteses previstas pela Lei dos Crimes Tributários (parágrafo único do art. 16, da Lei n. 8.137/90), pela Lei dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/90, art. 8.º, parágrafo único), pela Lei do Crime Organizado (Lei n. 9.034/95, art. 6.º) e pelo Código Penal (art. 159, 4.º – crime de extorsão mediante seqüestro).

Mais generosa foram as Leis de Lavagem de Capitais (Lei n. 9.613/98, arts. 1º, §5º), de Proteção a Vítimas e Testemunhas (Lei n. 9.807/99, arts. 13 e 14) e a Lei Antitóxicos (Lei n. 10.409/2002, art. 32, 2.º) que permitiram ao juiz inclusive deixar de aplicar a pena.

A oferta de dinheiro em nada se relaciona com esta figura jurídica.

Revista Ser Advogado: Não é no mínimo curioso que um acusado que acumule fortuna executando ações ilícitas, consideradas, inclusive, hediondas, à luz da legislação brasileira, possa querer fazer uma troca, usando dos recursos financeiros que acumulou ao longo de sua trajetória pregressa criminosa?

Marcelo Lamy: Sem dúvida, por isso foi acertada a decisão do juiz Fausto Martin de Sanctis que ordenou que Abadía entregasse em 48 horas os US$ 35 milhões que ofereceu, determinando ainda o seqüestro dos recursos, por terem origem criminosa.

O referido §5º prevê os benefícios da delação se o acusado prestar esclarecimentos conducentes a localizar os valores objeto do crime de lavagem. No caso, parece-nos que Abadía não se dispôs a dar essas informações (pois provavelmente descobrir-se-ia valores muito maiores), mas sim a simplesmente entregar tais valores.

Revista Ser Advogado: Admitindo-se que os valores oferecidos fossem aceitos, considerada sua origem ilícita, a medida não caracterizaria uma lavagem de dinheiro institucionalizada?

Marcelo Lamy: Tal oferta, em nosso regime jurídico, não pode ser aceita e caracterizaria mais do que a lavagem de dinheiro institucionalizada, configuraria a corrupção ativa e passiva institucionalizada, oficial.

Situações como essa são muito esdrúxulas, mas infelizmente presentes em nossa realidade. Por exemplo, institucionalizou-se em alguns órgãos públicos lenientes (inclusive em nosso Estado), a taxa de urgência. Como se a urgência da emissão de algum documento solicitado somente fosse legitimada com o pagamento...

Revista Ser Advogado: O precedente (se é que estamos falando de um) aberto, não pode estimular outros criminosos, traficantes ou não, que encontrariam no país, um "paraíso" onde pudessem usufruir desse benefício teoricamente amparado pela lei?

Marcelo Lamy: Se este expediente for legitimado, diria a todos os meus clientes empresários: não paguemos tributos! Se formos pegos, delatamos outros empresários que fazem o mesmo e não seremos punidos. Espero não ser obrigado a isso.

Revista Ser Advogado: Comparativamente a outros países, como é a situação da legislação brasileira no que se refere a esse procedimento? Ou seja: em outros países, é possível "comprar" a extradição?

Marcelo Lamy: A extradição não está a venda. Há países, no entanto, que a liberdade acusatória é tamanha que a “delação premiada” constitui verdadeiro leilão. Talvez seja essa a explicação do tamanho interesse de Abadía em ser extraditado ao EUA.

Sob o aspecto jurídico-constitucional, penso que a “delação premiada” rompe com o princípio da proporcionalidade da pena, já que se pune com penas diferentes pessoas envolvidas no mesmo fato e com idênticos graus de culpabilidade. É o que nos dizia George Orwell, na obra “A Revolução dos Bichos”, há iguais mais iguais. Os delatores não são, de acordo com a lei, tão criminosos quanto os demais!

 

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