Repercussão Geral das Questões Constitucionais

 

(artigo originalmente publicado na revista "Ser Advogado", n. 1 - Abril 2007)

 

Marcelo Lamy

 

Em 2004, por meio da EC n. 45, o sistema brasileiro de controle difuso da constitucionalidade sofreu relevante alteração, em razão da constitucionalização do instituto da repercussão geral das questões constitucionais, novo requisito de admissibilidade do recurso extraordinário.

Trata-se de instituto que busca sua inspiração em prática alastrada em outras cortes constitucionais: Suprema Corte Norte-Americana (writ of certiorari), Suprema Corte Argentina (requisito de transcendência), Tribunal Constitucional Espanhol (juízo de relevância), entre outras.

A carência de estudos pátrios sobre esta espécime, a criação constitucional sem uma definição do que caracteriza esse instituto e, especialmente, a mentalidade legalista extremada redundaram no entendimento de que o mesmo não poderia ser exigido pelo Supremo enquanto não se determinasse seu conteúdo em lei. Fato consumado que sempre nos causou inquietação.

Há poucos institutos estabelecidos em lei que se apresentam positivados em sua delimitação completa. Ou seja, apresentam-se definidos (de-finidos: revelam completamente as fronteiras limítrofes do que são e do que não são). Em seus próprios enunciados, delimitam sua exatas extensões e compreensões, de modo unívoco, em dado contexto. Diversos outros, no entanto, explicitam apenas parcialmente esses limites ou extensões. Ou seja, apresentam-se, na forma como foram enunciados, como conceitos.

Todos os conceitos revelam uma zona fixa (um núcleo) e uma zona periférica. No domínio do núcleo conceitual são estabelecidas as certezas; onde se inicia a zona periférica, as dúvidas começam.

Quando suas zonas periféricas apresentam-se de forma extensa e difusa e as zonas nucleares de forma reduzida (assim ocorre, em nosso sistema, v. g., com “notória especialização”, “notável saber”, “significativa degradação do meio ambiente”, “conduta irrepreensível”), afirma-se que estes conceitos são indeterminados.
A possibilidade de utilização jurisdicional dos mesmos assim mesmo existe, mas esta deve se dar apenas junto ao núcleo do conceito, não junto a zona periférica.

Recusar a possibilidade de utilização, seria convertê-los em algo despropositado, seria o mesmo que manifestamente não aplicar a lei ou a Constituição que os haja formulado. Admitir, por outro lado, a utilização indiscriminada, como se estivéssemos perante uma definição, também seria desvirtuar os limites do que foi positivado.

Ou seja, diante de qualquer conceito jurídico indeterminado, apesar de sua sempre relativa indeterminação, há sempre uma zona de certeza negativa (o que não é) e positiva (o que é) onde é possível o exercício jurisdicional, instância legítima para afastar as interpretações e aplicações incorretas e para garantir as interpretações e aplicações corretas. Apenas a zona de penumbra, de incerteza, é insindicável.

Com o exemplo de institutos assemelhados, já referidos neste texto, não vemos como não identificar um núcleo de certeza que já poderia ter sido utilizado pelo Supremo Tribunal Federal.

Nada obstante isso, adveio a lei n. 11.418, de 19 de dezembro de 2006, que regulamentou a repercussão geral, dizendo agora (de forma que todos os juristas pátrios aceitam - é nossa mentalidade legalista já referida) que o instituto será aplicado a todo e qualquer recurso extraordinário impetrado a partir de 17 de fevereiro.

Ocorre, no entanto, que a lei única e simplesmente diz que a repercussão geral da questão constitucional caracteriza-se pela existência de “relevância econômica, política, social ou jurídica, que ultrapasse os interesses subjetivos da causa”. Não define, nem conceitua o instituto.

Não nos parece, permisso vênia aos nossos legisladores, que algo novo foi criado, pois na expressão “geral” já se presume que a questão não interessa apenas às partes. Talvez a única novidade seja o reconhecimento legislativo de algo que já remansa nas mentes dos doutrinadores e julgadores modernos, o fato de que os aspectos econômicos, políticos e sociais devem acompanhar qualquer análise jurídica. Ou, por outras vias, o esclarecimento para os desavisados, que a importância (repercussão) geral não deve ser analisada somente com os olhos voltados apenas para o objeto precípuo da causa, mas com a lente de aumento das teses jurídicas que se discutem, pois este é o papel do Supremo no Recurso Extraordinário, dar a interpretação devida a uma relação de constitucionalidade.

A novidade, em verdade, repousa sobre o procedimento e sobre os efeitos da decisão negativa de existência. No procedimento, a possibilidade do Tribunal de origem encaminhar, em caso de multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, um ou mais recursos que entender representativos do grupo e sobrestar os demais até decisão do STF sobre a repercussão geral. Nos efeitos, a consolidação legal de que uma decisão negativa de repercussão geral (que somente pode ocorrer pelo voto de 2/3 dos membros do STF) constitui precedente vinculante, em matéria idêntica, tanto para dispensar a remessa ao plenário, quanto para operar a inadmissão automática dos recursos sobrestados (realidade semelhante a que já se operava no incidente de inconstitucionalidade – parágrafo único do art. 481, incluído pela lei n. 9.756/1998).

Superado nosso trauma da necessidade de lei, cremos que agora o instituto da repercussão geral ganhará a sua efetividade, infelizmente relegada indevidamente há mais de dois anos.

 

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