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Introdução à Fenomenologia

Luciene Félix
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana da ESDC
 mitologia@esdc.com.br

Blog: www.lucienefelix.blogspot.com

Existe uma coisa que eu não sei o que é. Porém, sei que se essa coisa não existisse nada mais existiria, nem Deus. Que coisa é essa?

A pergunta acima foi feita a Jéssica, uma estudante de 11 anos de Curitiba. Para espanto do professor, ela respondeu que essa coisa era a realidade. O “real” existe, independente de nós? Através de nós? Ou ainda: É possível alcançarmos o entendimento do que é real?

Sabemos que, tanto nós mesmos, quanto as atividades políticas, econômicas, sociais e culturais (artísticas) que vivenciamos estão em constante movimento. E, na realidade (literalmente), quando um movimento desses se destaca, se sobressai, é comum utilizarmos o termo “fenômeno”. Constatamos assim, o fenômeno das redes sociais; o fenômeno da crise econômica mundial; do elevado número de divórcios; da corrupção, fenômenos da moda, da música e até mesmo o brilhantismo técnico de um esportista o alça à alcunha de “fenômeno”.

Ininterrupto e imensurável, o caldeirão da realidade abarca tudo o que aparece aos nossos sentidos ou à nossa intuição intelectiva. Realidade é espelho, aparência de “algo” e tudo o que manifesta (phainestai) é fenômeno (phaenomenon). Assim, é também o que aparece no placar que faz ou não, de Ronaldo, “fenômeno”.

Fenômeno é algo em constante movimento, sempre em aberto e justamente por ter seu campo ilimitado, se esquiva a ser enquadrado dentro de uma ciência particular. Desta espécie de “árvore”, com suas raízes ocultas, proliferam inúmeros galhos, em diferentes direções, sem um télos (propósito) pré-determinado ou definitivo.

Diante dessa imensidão, Paul Ricouer (1913-2005) diz que “atendo-se à etimologia, quem quer que trate da maneira de aparecer do que quer que seja ou, consequentemente, que descreva as aparências ou as aparições, faz Fenomenologia”. Contando com estudiosos de diversas áreas, grupos ou associações acadêmicas mais informais, o “círculo” (os alemães denominavam "kreis”) de fenomenólogos é vasto. Um exemplo interessante é o do experiente engenheiro Kleber Sernik, que discorre sobre o desencadeamento da crise econômica mundial valendo-se do sistema dialético hegeliano (www.blogdokebers.blogspot.com).

Uma vez que esse “movimento” se assentou definitivamente na Filosofia e, a rigor, “o movimento fenomenológico” ambiciona, nas palavras de Merleau-Ponty (1908-1861) “revelar o mistério da razão e o mistério do mundo”, há de se estabelecer um recorte mais austero do que é Fenomenologia.

Dos pré-socráticos aos modernos, muitos versaram sobre a questão das aparências. Platão (427 a.C. – 347 a.C.) já tratara do problema do “ser em si e suas aparências no mundo sensível” quando, no Livro VI da República, em diálogo com Glauco, Sócrates diz: “Reconhecerás que o Sol proporciona às coisas visíveis, não só, segundo julgo a faculdade de serem vistas, mas também a sua gênese, crescimento e alimentação, sem que seja ele mesmo a gênese”.

O termo “fenomenologia” foi utilizado pela primeira vez na obra “Novo Organon” (1764), de J.H. Lambert (discípulo de Christian Wolff), entendendo-o como sendo “a teoria da ilusão” e suas inúmeras formas. Ilusão porque a aparência pode: a) revelar ou apontar o caminho rumo à verdade; b) iludir encobrindo-a ou ainda, c) ocultar a verdade.

Immanuel Kant (1724-1804), afirmou numa carta, que a primeira parte de sua “Crítica da Razão Pura” deveria ter o título de “A Fenomenologia em geral”, uma espécie de introdução a preceder à metafísica. Mas preferiu o título de “Estética Transcendental”, atribuindo-lhe a “tarefa de investigar a estrutura do sujeito e das ‘funções’ do espírito, circunscrevendo o campo do aparecer ao ‘fenômeno’”. Com isso, Kant delimitou as pretensões de alcance de nosso conhecimento e, incognoscível, a metafísica foi excluída de nossas faculdades de entendimento.

Ao estudo do “Ser” (em si e por si, que subjaz à realidade/manifestação) já se denominou teologia, metafísica, mas é com o fundador do movimento fenomenológico, Edmund Husserl (1859-1938) que temos um conteúdo novo a uma palavra já antiga: Ontologia – o ramo da Filosofia que se propõe a estudar a ciência do Ser como uma disciplina distinta.

Na evolução do “Movimento Fenomenológico” ao longo da História, foi o alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1830) quem impôs definitivamente o termo na tradição filosófica. Com a obra “Fenomenologia do Espírito” (1807), nos apresentará conceitos de Ser em si, de “o Absoluto”.

Será no modo como concebe a relação entre o fenômeno e o ser – ou o Absoluto, que Hegel ultrapassará a fenomenologia kantiana, pois, enquanto Kant insiste na incognoscibilidade, ele afirmará que, sendo cognoscível, o fenômeno nada mais é que a manifestação do próprio Ser, ou seja, do Absoluto, qualificando-o como sendo o Espírito.

Assim, a Fenomenologia em Hegel será uma filosofia do Espírito, do Absoluto: “O trágico na História humana é um momento necessário para o vir-a-ser do Espírito, por ser o que Hegel denomina o negativo – isto é, o motor do movimento da História, sem o qual o Espírito não poderia enriquecer-se de suas sucessivas figuras e manifestações”.

A fenomenologia hegeliana, refutando a incognoscibilidade dessa ciência, acaba por fornecer “todos os materiais ao filósofo, cabendo a este pensar sobre esta ordem oculta e falar de seu significado absoluto”.

Enquanto que na fenomenologia kantiana, o Ser é concebido como limitador do conhecimento do “nômeno”, que é a “causa” do fenômeno (inalcançável por nossa vã filosofia, pois não pode ser pensado como objeto dos sentidos, mas somente como coisa em si), no sistema hegeliano: “o fenômeno é reabsorvido dentro do conhecimento sistemático do ser”.

O filósofo francês André Dartigues, em sua obra “Qu’est-ce que la phénomenologie”, esclarece: “Não se trata, para Hegel, de construir uma filosofia na qual a verdade do absoluto se enunciasse de fora ou ao lado da experiência humana e sim de mostrar como o absoluto está presente em cada momento desta experiência, tanto religiosa, como estética, jurídica, política ou prática”.

A genialidade de Hegel está em elucidar que tudo o que aparece na realidade, o fenômeno (suspendamos juízos de valor) é manifestação do Absoluto. A magnitude que sua teoria atinge, através de uma peculiar dialética (a presentificação do eterno e o mecanismo intrínseco de seu incessante vir-a-ser), o eleva a vertiginosa estatura de um Platão.

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