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Amor Líquido: a fragilidade dos laços humanos

Luciene Félix
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana da ESDC
 mitologia@esdc.com.br

Blog: www.lucienefelix.blogspot.com

 

“É da natureza do Amor ser refém do destino”.
Lucano/Francis Bacon

É sobre a desesperadora dificuldade de se perpetuar os vínculos no mundo de hoje que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman se debruça na obra que dá título a esse artigo, e a respeito da qual tecemos breves considerações.

Eterno e em constante mudança, o amor é dos deuses mais antigos, a maior dýnamis (potência) do universo. Concilia a permanência de Parmênides (o Ser É) e a mudança de Heráclito (Tudo Flui), o que não surpreende se considerarmos que sua areté (excelência) é justamente essa: unir.

Desde ‘O Banquete - sobre o Amor’, de Platão (vide artigo nesse Blog), onde nada de relevante deixou de ser dito acerca do Amor, o que há de novo em nossa líquida sociedade moderna alterando essa potestade? É possível que ainda existam ligações indissolúveis e definitivas? Ou o veloz virtual mundo líquido em que vivemos dificulta o perene, nos obrigando a viver constantemente sob a égide da incerteza, numa absoluta fluidez e alternância de vínculos?

Quando as relações virtuais (conexões) estabelecem um padrão, um novo molde/paradigma de relacionamento se impõe. E em nosso cotidiano, o virtual tem se tornado cada vez mais real.

E o que é a realidade? Segundo a clássica descrição de Émile Durkheim (1858-1917): algo que fixa, que ‘institui fora de nós certas formas de agir e certos julgamentos que não dependem de cada vontade particular tomada isoladamente’; algo que ‘deve ser reconhecido pelo poder de coerção externa’ e pela ‘resistência oferecida a todo ato individual que tenda a transgredi-la’.

Quanto aos vínculos, atentemos para o fato de que o de parentesco goza de um status privilegiadamente singular: é de nascença, incondicional, irrevogável e indissolúvel. É pura e simplesmente, querendo ou não, uma coisa dada. Passíveis de serem mais estreitados ou nem tanto, vínculos de parentesco não são precedidos por escolha (escolher qualifica), daí serem bênçãos ou maldições, dádiva ou sina.

É precisamente a inabalável solidez que o parentesco pressupõe, que tanto almejamos quando, por desejo, nos unimos a alguém. Obviamente, ao exercermos a liberdade de escolher a quem nos vincularmos, priorizamos nossas afinidades – Wahlverwandschaft.

É no reduto das escolhas amorosas que, exercendo nosso livre arbítrio, ao sermos correspondidos, vislumbramos o valor do nosso ‘eu’. E de quanto mais virtudes, predicados, distinções e de atributos singulares a pessoa escolhida for dotada, mais glória tributamos a nós mesmos: “No brilho ofuscante da pessoa escolhida, minha própria incandescência encontra seu reflexo resplandecente”, diz Bauman.

No decorrer da vida, nossos valores mudam (aos 50 anos, estaremos atentos a virtudes inimagináveis aos 20, por exemplo). Estejamos cônscios a mais essa doce cilada de Eros. Convém não fazer do amado, objeto: “uma simples extensão, eco, ferramenta ou empregado trabalhando para mim (...).”

Parentescos, cultivados ou não, estarão sempre à mão, já a escolha deliberada “diferentemente da sina do parentesco, é uma via de mão dupla. Sempre se pode dar meia volta”. Exceto, talvez, pela adoção de um (a) filho (a), cujo cordão umbilical (mesmo quando inexistente), é duplamente alicerçado, nas demais, Bauman chama a atenção para o fato de que “A menos que a escolha seja reafirmada diariamente e novas ações continuem a ser empreendidas para confirmá-la, a afinidade vai definhando, murchando e se deteriorando até se desintegrar”.

O ‘regar todos os dias’ é algo que soa extremamente extenuante para nós, já avessos e desacostumados a sólidos e duráveis, hipnotizados pelo instantâneo, descartável e de menor esforço possível: “nem mesmo os casamentos, ao contrário da insistência sacerdotal, são feitos no céu, e o que foi unido por seres humanos estes podem – e têm permissão para – desunir” como nos alerta o sociólogo.

O cultivo de uma relação, amorosa ou de amizade – real ou virtual – pode se revelar árduo e enfadonho. Quer seja nos tempos d’outrora, ou nos dias de agora, é exigir demais a um casal apaixonado o cumprimento da promessa de que o amor dure e perdure até que a morte os separe.

O sapientíssimo tragediógrafo grego Sófocles (496 a.C. – 406 a.C.), em sua atemporal obra “Antígona” é certeiro: “O que é a vida do homem? Algo que não é orientado para o bem ou para o mal, nem moldado para louvar ou censurar. A oportunidade leva o homem às alturas, a oportunidade o arremessa para baixo e ninguém pode prever o que será a partir daquilo que se é”.

Mesmo que essa imprevisibilidade nos assombre, Bauman nos diz também que “ninguém pode suportar com leveza essa impossibilidade (...) é o futuro, assustadoramente desconhecido e impenetrável, e não a dignidade de um passado que, embora venerável, se oculta por trás do dilema (...)”. O fato é que talvez nunca tenha havido tantas oportunidades – leiam-se incertezas – quanto agora.

Se diante dum oráculo, pudéssemos indagar sobre o futuro de nossos amores, por qual das seguintes possibilidades de resposta optaríamos: A) Durará para sempre; B) Não durará ou C) Não há como saber?

Misteriosamente “barrando o acesso, negando o ingresso, inatingível e eternamente além do nosso alcance”, a última opção é a divina, aponta o estudioso. Assim é o amor.

Fascinante, Eros não desagrada a ninguém, imprevisibilidade é outro de seus desconcertantes e sedutores atributos. Sentimentos de insegurança fomentam desejos conflitantes que culminam na dilacerante alternância entre “apertar os laços e ao mesmo tempo mantê-los frouxos”.

Por mais que desejemos ser um só – somente o amor permite essa fusão, repetidas vezes – há a intransponível dualidade dos seres: “Tentativas de superar essa dualidade, de abrandar o obstinado e domar o turbulento, de tornar prognosticável o incognoscível e de acorrentar o nômade – tudo isso soa como um dobre de finados para o amor.”

Será que, quando se trata de amor, posse, poder, fusão e desencanto são mesmo, “Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse” como aponta o estudioso? Zygmunt Bauman diz que Odo Marquad atentou para o fato que “do parentesco etimológico entre zwei e zweifel (“dois” e dúvida”, em alemão) e insinuou que o elo entre essas palavras vai além da simples aliteração. Onde há dois não há certeza”.

Reduzindo drasticamente as pressões, em nenhum outro ambiente os vínculos, os relacionamentos são tão agradáveis e descartáveis quanto no mundo virtual: “As relações virtuais se encaixam como uma luva na atual vida moderna. Diferente dos compromissos ‘reais’ e, mais aprisionantes ainda, dos compromissos de longo prazo, essas relações são indolores, são fáceis de entrar e sair, aparecem e desaparecem num clique: ‘Em comparação com a ‘coisa autêntica’, pesada, lenta e confusa, eles parecem inteligentes e limpos, fáceis de usar, compreender e manusear (...)”.

Simplesmente embaraçosos ou perturbadoramente constrangedores, muitas vezes é grande a dificuldade de romper vínculos/relações ‘inconvenientes’, mas romper uma ‘conexão indesejável’ não requer prática nem tampouco habilidade: “conexões podem ser rompidas, e o são, muito antes que se comece a detestá-las”, diz Bauman.

Existe algo mais simples que não responder a um email (que podemos não ter mesmo recebido ou ido parar na caixa de ‘spam’)? E o ‘Delete’ no teclado, além de tempo, não nos poupa também da enfadonha necessidade de promessas, desculpas e das inúmeras e incômodas máscaras?

Mas não se iludam! No mundo virtual, embora sejam inúmeros (e sempre crescentes) os “contatos”, ter acesso não significa (muito menos garante) relações prazerosas, vínculos estreitos e: “Manter-se em alta velocidade, antes uma aventura estimulante, vira uma tarefa cansativa”, aponta Bauman.

Obviamente há o risco de, não favorecendo êxito no aprofundamento (leia-se qualidade) das relações, buscarem-se compensações na velocidade com que eles surgem e desaparecem (entenda-se quantidade).

No virtual, substituição é a palavra de ordem: “quando se esquia sobre gelo fino, a salvação está na velocidade”. Nada mais confuso, instável e descartável.

Lúcido, Zygmunt Bauman diz que “Não se pode aprender a amar, tal como não se pode aprender a morrer (...) chegado o momento, o amor e a morte atacarão – mas não se tem a mínima idéia de quando isso acontecerá. Quando acontecer, vai pegar você desprevenido”.

Nada avessa ao mundo virtual, considero curioso que essa navegação favoreça e muito a idealização do amor, realizando o platônico. Vínculos reais e relações físicas, além de sujeitos a conceitos pré-concebidos (preconceitos) também nos acorrentam a tempo e espaço, enquanto afinidades por ‘idéias’ e ideais, além e acima de mundanidades, são mais livres e autênticas.

Pleno é reunir corpo e alma – Pandêmia e Urânia – as duas modalidades de Afrodite (*). Privilegiar a primeira é mais razoável para a felicidade (do tipo "feito no céu"). Talvez seja por isso que Nietzsche tenha recomendado que nos unamos com quem seja prazeroso... Conversar!

Tão inescapável quanto à morte, reais ou virtuais, nunca houve nem haverá receita universal para desfrutar dessa dádiva que é o amor. Como a própria vida, não há garantia de prazo. Seu destino é enfeitiçadoramente inconcluso, exatamente como proferido pelo oráculo. O télos (propósito) desse daimon divino é gerar e parir a beleza - no corpo ou na alma – pode ser em ambos. E até eterno.

 

(*) Trecho do artigo "O Banquete – sobre o Amor, Platão":

Mais realista, “não é um só”, objeta Pausânias que, cingindo a unidade do Amor, subdivide-o e (não os excluindo) hierarquiza-os imediatamente: Afrodite não é só uma, há a mais velha, Urânia (Celestial) e a Pandêmia (pan = todos e demos = povos). Nesta última, amam mais o corpo que a alma. Afrodite Pandêmia (a Popular, vulgar) inexoravelmente é vencida pelo tempo (Chronos): “Com efeito, ao mesmo tempo em que cessa o viço do corpo, que era o que ele amava “alça ele o seu vôo” (citando Homero), sem respeito a muitas palavras e promessas feitas. Ao contrário, o amante do caráter, que é bom, é constante por toda a vida, porque se fundiu com o que é constante”.

Pausânias revela duas formas de Amor: Afrodite Urânia, associada ao eterno, imortal e Afrodite Pandêmia ao transitório, mortal. Os dois amores são necessários, embora sucumbir dando ênfase à Pandêmia desvirtue a pólis.

E mesmo que esteja passível de cometer um engano, um erro de pessoa, quem ama verdadeiramente é digno de nobreza.

Escola Superior de Direito Constitucional - ESDC
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