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Família (parte 1)

 

Luciene Félix
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana da ESDC
 mitologia@esdc.com.br

Blog: www.lucienefelix.blogspot.com

Existir é existir com. Você é livre para escolher esse 'com' quem existir. Mas esse com é fruto de uma herança familiar. Eis o paradoxo da liberdade entrelaçada ao destino.

O filósofo grego Aristóteles (384a.C. a 324a.C.), definiu "família" como sendo uma comunidade (oikós - casa) que serve de base para a cidade (pólis). Desde então, sempre ouvimos e repetimos que a família é a base da sociedade.

Embora a estrutura familiar tenha sofrido profundas e significativas alterações ao longo dos últimos séculos (e mais ainda nas últimas décadas), o desejo de fundar e pertencer a uma "ordem" familiar, fonte de afeto, amparo e segurança, tanto psíquico-emocional quanto material, revela-se indestrutível: não naufraga.

Encobrindo diferentes realidades, afetada pelas debilidades dos indivíduos desnorteados e cada vez mais dessacralizada, a família permanece sendo, indubitavelmente a mais sólida instituição humana.

Até cerca de 1861 e 1871, o que sabíamos das famílias era o que nos descreviam as obras literárias ou registros de cunho histórico. Esses saberes foram ampliados e aprofundados graças às novas ciências humanas: sociologia, antropologia e psicologia, por exemplo.

Uma das mais perspicazes análises sobre essa questão nos é apresentada pela renomada psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco em sua obra "A Família em desordem". Mas antes mesmo de nos atermos à família, nessa lâmina de microscópio que é a psicanálise, contextualizemos: o que é a família?

Do ponto de vista antropológico, o inesquecível cientista Claude Lévi-Strauss (1908-2009) nos fez cientes de que "a vida familiar apresenta-se em praticamente todas as sociedades humanas, mesmo naquelas cujos hábitos sexuais e educativos são muito distantes dos nossos".

Trata-se, portanto, de um fenômeno humano universal que abarca a união mais ou menos duradoura e socialmente aprovada entre um homem, uma mulher (aliança de casamento) e seus filhos (aliança de filiação). Roudinesco, em nota de rodapé, informa que foram recenseadas de quatro a cinco mil sociedades no mundo desde os primeiros estudos do historiador Heródoto e que em todas elas a família conjugal está presente.

Mas para que haja uma "clássica" família, além da diferenciação biológica (homem + mulher), há também a social: a interdição do incesto "cuja aplicação assegura, na história da humanidade, a passagem da natureza à cultura. A proibição do incesto é, portanto, tão necessária à criação de uma família quanto a união de um macho com uma fêmea" diz Lévi-Strauss.

Cidades são compostas por famílias. Gens, genos, raça, dinastia, linhagem, casa, mais que a mera constituição de um grupo, a família possui uma estrutura hierarquizada cujo poder fora, em seus primórdios, centralizado na figura do pai. E são três as estruturas básicas de relações com esse "todo-poderoso" na terra: a relação dos escravos para com o senhor; a da esposa para com o marido e o vínculo entre os filhos e o pai.

A família dita "nuclear" (pai, mãe e filhos) é fruto de uma longa evolução, sobretudo entre os séculos XVI e XVIII. Antes disso, família também compreendia um grupo mais extenso que incluía a outros (agregados): os demais parentes, os criados e até mesmo amigos muito próximos.

A evolução das famílias ao longo da história compreende três grandes períodos: antiga, moderna e contemporânea.

A antiga família "tradicional", presidida pela autoridade patriarcal, objetivava assegurar a transmissão do patrimônio (sangue, nome e educação refinada também são patrimônios). Os próprios pais se incumbiam de escolher os cônjuges para seus filhos, ainda em idade precoce. As afeições e afinidades sexuais dos nubentes não são levadas em conta e casamento, quer queira, quer não, é até que a morte os separe: "a célula familiar repousa em uma ordem do mundo [supostamente] imutável (.) ", diz Roudinesco.

Herança dos tempos arcaicos, honrado guerreiro, senhor da família, o pai é a encarnação de um Deus, rei - amado ou temido - mas sempre respeitado por seus súditos: "Herdeiro do monoteísmo, reina sobre o corpo das famílias e decide sobre os castigos infligidos aos filhos". Castigos (com diferentes graus de perversidades) que podem causar distúrbios indeléveis nas crianças, fraturando a psique irreparavelmente, por toda uma vida.

Resquícios dum passado ainda recente, ainda hoje muitas famílias "conservadoras" cultivam essa rigidez nefasta: mesmo que a angústia e a frustração acompanhem os cônjuges, a resignação estampada em seus rostos testemunha o alto preço que pagam para não desapontar: a própria felicidade e também, em maior ou menor grau, a felicidade daqueles que os cercam.

No mundo moderno, entre o final do século XVIII e meados do XX, uma lógica afetiva reivindicará as 'vontades' dos indivíduos: "Fundada no amor romântico, ela sanciona a reciprocidade dos sentimentos e os desejos carnais por intermédio do casamento".

O poder econômico é modulador que, alterado, também modifica os direitos e deveres entre os cônjuges. Isso se torna ainda mais evidente quando o macho deixa de ser o único provedor. A divisão do trabalho e de outras responsabilidades entre o casal e a prole - cuja educação a pátria deve assegurar - faz com que a atribuição da autoridade torne-se motivo de uma divisão incessante entre o pai e a mãe e entre o Estado e os pais.

A escassez de oportunidades profissionais ainda relega muitas mulheres à observância de uma "servidão voluntária", circunscrevendo-as exclusivamente ao âmbito doméstico - sobretudo nas camadas sociais desprovidas de uma formação cultural mais elevada. Desse modo, o poder patriarcal ainda permanece quase inabalável.

A família contemporânea impõe-se a partir da década de 1960. O advento da pílula confere à mulher maior domínio sobre sua sexualidade e contribui para romper os grilhões d'outrora. Essa fragilizada família 'pós-moderna' caracteriza-se por unir dois indivíduos em busca de relações íntimas ou realização sexual: "A transmissão da autoridade vai se tornando então cada vez mais problemática (...)". Multiplicam-se os divórcios, as separações e a proliferação de novas recomposições conjugais ficam absolutamente "a gosto do freguês".

Desde o cenário moderno, o conceito de família não está mais atrelado a uma mística divina (quase um dogma) às pré condições biológicas ou ao Estado. Desde o século XIX a vida privada ganha relevo e independência: "A esfera do privado surgiu de uma zona 'obscura e maldita' para se tornar o lugar de uma das experiências subjetivas mais importantes de nossa época".

O sujeito agora goza de toda liberdade, inclusive para se furtar à responsabilidade e se sente autorizado a poder sacrificar toda(s) a(s) família(s) que forma. O que havia de excesso por um lado [austero limite] desagua noutro exagero de outro: imprudência ilimitada.

Prossigamos debruçando-nos sobre as origens míticas da família, a transição do matriarcado para o patriarcado, analisando o fracasso da outrora triunfante família autoritária (hoje melancólica e vitimada pelo parricídio/matricídio/infanticídio real ou simbólico) e refletindo sobre as mutiladas famílias de nossos tempos atuais "feita de feridas íntimas, de violências silenciosas, de lembranças recalcadas" como aponta a estudiosa psicanalista.

Esses tópicos são fundamentais para que possamos desvendar e compreender melhor a família. Com propriedade, Elisabeth Roudinesco afirma que: "Ao perder sua auréola de virtude, o pai, que a dominava, forneceu então uma imagem invertida de si mesmo, individualizado, cuja grande fratura a psicanálise tentará assumir durante todo o século XX".

Tendo a família por base, não nos surpreende que toda sociedade esteja mesmo refém do divã, das drogarias - ou de ambas - num caos e desordem total.

Escola Superior de Direito Constitucional - ESDC
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