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Justiça ou Vingança?

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Luciene Félix
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana da ESDC
 mitologia@esdc.com.br

Blog: www.lucienefelix.blogspot.com

Por isso, para que possa contar com a poderosa combatividade da Justiça, todo mortal deve encarar a Medusa, símbolo de sua própria vaidade, personificação da decadência espiritual.


Em inúmeros processos litigiosos, o que menos está em jogo é o papel moeda. Tanto que muitos optam por doar todo o ganho da causa a alguma instituição de caridade, deixando bem claro que não estão sendo movidos pela ganância do dinheiro. Nem por isso furiosa e cegamente deixam de perseguir algo que prezam: o valor moral da dor infringida à alma (psique). Aviltados em sua dignidade, atingidos na honra que trazem no peito (timós), no caráter, na personalidade, exige-se reparação, clama-se por Justiça! Justiça ou vingança?
 
Os antigos gregos dispunham de um teste infalível para discernir de qual dos dois se tratava. Antes de discorrer sobre isso, retornemos ao tribunal do dramaturgo inglês William Shakespeare em “O Mercador de Veneza”, pois não há como não se apiedar pelo desfecho do personagem do judeu Shylock, na referida peça teatral.
 
O jurista alemão Rudolf Von Ihering (1818-1892), em seu clássico opúsculo “A Luta pelo Direito” (de onde recorto somente a questão relativa à peça) insurge-se contra a covardia da astuta sentença aplicada a Shylock: “(...) uma vez admitida [a validade da letra], a eficácia do título não deveria ter sido frustrada por um ardil infame quando da execução da sentença. (...) todos concordavam em que o direito estava ao lado do judeu. E, imbuído duma confiança inabalável no direito universalmente reconhecido, Shylock recorre à Justiça. (...) vencedor, completamente seguro do seu direito, quer realizar aquilo a que a sentença o habilitou, o mesmo juiz que solenemente proclamou esse direito, frustra o mesmo por uma objeção, uma artimanha que de tão desprezível e vil não merece sequer uma refutação séria. Será que existe carne sem sangue?”
 
Embora não deixe de render homenagens à grande heroína da peça, referindo-se à ardilosidade de Pórcia, Ihering prefere “não recomendar à juventude dedicada ao estudo do direito que frequente sua escola”.
 
E prossegue: “se quiséssemos submeter a mesma à crítica do jurista, este só poderia concluir que o título de Shylock era nulo, por conter uma disposição contrária à moral; por isso mesmo o juiz deveria ter-lhe negado validade desde logo. Se não o fez, se apesar de tudo o 'sábio Daniel' reconheceu a eficácia do título, usou ele dum estratagema miserável, cometeu uma rabulice lamentável, quando recusou ao homem a quem tinha concedido o direito de cortar uma libra de carne dum corpo vivo a faculdade de derramar o sangue indissoluvelmente ligado à mesma”.
 
Noutro esclarecedor exemplo, Ihering diz que é como se alguém autorizasse a passagem por um determinado caminho e depois reclamasse das pegadas. Ora, caminhar não pressupõe deixar pegadas?
 
Mesmo reconhecendo que a fraude fora cometida por motivos humanitários, Ihering indaga “deixará a justiça de ser injusta quando inspirada num móvel humanitário?” Vejamos.
 
Justiça é um sentimento que em sua abstração abarca harmonia, simetria e equidade. Ihering foi muito feliz ao comparar o sentimento de justiça ao sentimento de amor, afirmando que sua força jaz no sentir. Sobre o sentimento que uma injustiça acarreta, diz que “quem nunca sentiu essa dor, em si mesmo ou em outrem, ainda não compreendeu o que é o direito, mesmo que saiba de cor todo o corpus juris. Não é raciocínio, mas só o sentimento que pode dar-nos essa compreensão, e é por isso mesmo que o sentimento de justiça costuma ser designado com toda razão como a fonte psicológica primordial do direito”.
 
Plenamente de acordo com sua argumentação, raciocino que o sentimento de compaixão é capaz de transmutar injustiça em justiça. Lamentável que não tenham prosseguido nesse sentido quando foi proferida a dura sentença de Shylock.
 
Regressemos à Grécia arcaica para ponderar sobre a causa do judeu. As Górgonas são três irmãs (Medusa, a dominadora; Euríale, a errante e Esteno, a violenta) que simbolizam os inimigos interiores que temos de evitar. São deformações monstruosas da psique nascidas do desvirtuar de três pulsões humanas: sociabilidade (Esteno), sexualidade (Euríale) e espiritualidade (Medusa). Como a perversão espiritual prevalece sobre as demais, Medusa é conhecida como rainha das Górgonas.
 
A perversão da pulsão espiritual, por excelência, é a vaidade (imaginação exaltada em relação a si mesmo) cujo símbolo é a serpente. Inúmeras serpentes coroam Medusa. Sua cabeça foi presente do herói Perseu à deusa grega da Sabedoria e Justiça Palas Athena, quem o auxiliou em combate, emprestando-o seu escudo, para que não a encarasse e ficasse estagnado.
 
Para derrotar a Medusa, foi necessário que o herói a surpreendesse enquanto dormia, pois o homem somente é lúcido e apto ao combate espiritual quando a exaltação de sua vaidade não está desperta. Arma muito cobiçada, mesmo morta, a cabeça da Medusa continuou mantendo seu poder imobilizador. O temido adorno foi então incrustado na égide (proteção intransponível, peitoral feito de couro de cabra) da patrona da Justiça, Athena.
 
Como Shylock se enxergaria diante de algo que refletisse a imagem verídica das coisas e dos seres, que permitisse o “conhecer a si mesmo” com toda clareza, em que o homem se vê tal como é, e não como imagina ser?
 
No frontispício do templo de Apolo (deus da harmonia, irmão de Athena), na cidade de Delfos, leem-se as palavras que resumem toda a verdade oculta dos mitos: “conhece-te a ti mesmo”. A única condição do conhecimento de si mesmo é a confissão das intenções ocultas, que, por serem culpáveis, são habitualmente maquiadas pela vaidade (por um clamor de justiça falso, pois sem mérito, infundado). A inscrição reveladora significa, portanto: desmascara tua falsa razão, tua desmedida (hýbris) ou, o que dá no mesmo, aniquila o ódio proveniente de tua vaidade. Faz-se necessário a clarividência, o amor, a compaixão, o inverso do funesto egoísmo que ninguém consegue confessar a si mesmo, nem suporta a visão paralisante.
 
Athena é a deusa da combatividade espiritual (as três manifestações da elevação espiritual são a verdade, a beleza e a bondade). O sentimento de amor pela verdade é a condição para ascender ao conhecimento de si e, em conseqüência, para desfrutar a harmonia (Apolo), a sapiência e justiça (Athena).
 
O télos (propósito, objetivo, finalidade) é muitíssimo relevante, daí a ruína de Shylock. A deusa da Justiça prioriza o sentimento de humanitarismo: “a compaixão é a parte mais bela da Sabedoria”, profere ela com austera solenidade. Convidando os mortais a reconhecerem a culpabilidade advinda da agudeza do olhar de Medusa, obriga-os a recuar à luta contra a mentira essencial, a mentira subconscientemente desejada, o exaltado desejo de vingança, o recalcamento, as falsas razões.
 
Somente assim têm-se certeza de que a reivindicação não oculta outra intenção. Ante essa prova, quem recorre a Athena na busca por Justiça tem somente duas possibilidades: contar com sua proteção, certeza da Vitória (deusa Niké que sempre acompanha sua lança, sua espada) ou petrificar-se em seu manifesto ódio, pois a vingança é de uma fealdade aterrorizante.
 
Todo esse legado mitológico pode ser resumido numa palavra: limite. Ora por comungar da Justiça, ora por não alcançar esse “sentir”, é justamente contra isso que o ser humano empreende toda sua luta, pois, “limite” compromete justamente, nosso bem mais perseguido e precioso: liberdade.
 
Quando ultrapassamos limites, a dor e a deformidade (tanto física quanto moral) evidenciam nossa derrota: “Quod licet Jovi, non licet bovi” (O que é permitido a Júpiter [Zeus] não é permitido a um boi). Animais e racionais, participando de ambos, nem sempre a luta é digna. Em todo caso, é eterna.

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