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O narcisismo no mito grego

Luciene Félix
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana da ESDC
mitologia@esdc.com.br

 

 “Quando eu te encarei frente a frente e não vi o meu rosto,
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto...
É que Narciso acha feio o que não é espelho”
Sampa - Caetano Veloso
 

Neste mês em que comemoramos o “Dia dos Namorados”, versaremos sobre um dos comportamentos humanos que, infelizmente, impedindo a verdadeira entrega que propicia a felicidade no amor, promove solidão e angústia. Trata-se do narcisismo, tão comum nos dias de hoje como sempre fora no passado. No relato abaixo, consideramos as obras dos mitólogos Robert Graves, Rene Ménard e do brasileiro Junito de Souza Brandão.

Eco era uma bela ninfa dos bosques e das fontes. Sabia de tudo o que se passava nos bastidores do Olimpo; tagarela, era muito fofoqueira e, em qualquer debate, buscava dar sempre a última palavra! A deusa do Amor e da beleza, Afrodite se deleitava com toda futilidade dos mexericos relatados por Eco.

Certo dia, Eco testemunha Zeus, o soberano-poderoso do Olimpo ir ao encalço de mais uma conquista. Logo mais adiante, Eco se depara com a deusa Hera à procura do marido. Esperta, Eco diz a Hera que Zeus acabara de passar, procurando por ela e que seguiu pela direita. Hera fica entre envaidecida e desconfiada por essa inusitada atitude de Zeus.

Assim que Hera se vai, Zeus, que tudo observava, fica extremamente agradecido a Eco por tê-lo acobertado da furiosa esposa e a presenteia com um precioso anel. Eco fica feliz da vida!

Não demora muito e a deusa Hera surge novamente para falar a Eco que não encontrou o marido. Ao avistar o belíssimo anel no dedo da ninfa, compreende o ardil e a penaliza dizendo que, à partir de então Eco deixará de ser uma fofoqueira mentirosa! Faz com que a pobre Eco perca a voz e passe somente a repetir as últimas palavras de tudo o que ouve. De tanto se imiscuir na vida alheia, Eco não tem mais opinião própria.

Narciso, cuja palavra é derivada de nárke (entorpecimento, torpor, daí os narcóticos), era filho da ninfa azul Liríope e do Deus-Rio Cefiso.

O menino era tão belo, mas tão belo que a mãe ficou deveras preocupada com seu futuro. Nessa cultura, uma beleza fora do comum sempre assustava porque era provável que isso arrastasse o mortal para a hýbris, a desmesura, a falta de medida, fazendo com que ultrapassasse o métron (a justa-medida) tão cara aos antigos gregos. Embora a beleza fosse outorgada pelos deuses, Narciso era mais belo até que os Imortais.

A mãe de Narciso, continuamente preocupada com o destino de um filho tão belo, foi consultar o vidente Tirésias a fim de saber quantos anos viveria o menino, e o mântico lhe disse: “Narciso viverá até uma idade muito avançada, desde que nunca veja a si mesmo”. A mãe não compreendeu muito bem a profecia, mas tranqüilizou-se.

Qualquer pessoa poderia, com razão, apaixonar-se por Narciso. Quando ele mal chegou aos 16 anos, já deixara para trás uma trilha de corações partidos de ambos os sexos. Era desejado pela Grécia inteira! Por conta disso, tinha um orgulho obstinado de sua própria beleza, pois acreditava que não havia ninguém à sua altura.

Certo dia a ninfa dos bosques, Eco avistou Narciso e apaixonou-se perdidamente por ele.

Quando Narciso saiu para caçar cervos com seus amigos, Eco se escondeu e o seguiu. Estava desesperada para falar com ele, mas a punição da deusa Hera não lhe permitia ser a primeira a falar, e tudo quanto podia fazer era repetir exatamente as últimas palavras que ouvia.

Narciso, percebendo a presença de alguém gritou: “Há alguém aqui?”

Aqui! Eco respondeu.

Essa voz surpreendeu Narciso, que não avistava ninguém. Então ele pediu: “Venha!”

Venha! Repetiu Eco.

“Por que você me evita?” Gritou Narciso.

Evita?

“Vamos ficar juntos aqui!” Apelou o formoso rapaz.

Aqui! Disse Eco ao sair de seu esconderijo, correndo em direção a Narciso.

Mas ele era frio, insensível e a repeliu empurrando-a violentamente. “Morrerei antes que você se deite comigo!”, gritou ele, fugindo dela. Comigo..., suplicou Eco.

Narciso se fora e ela, envergonhada pela rejeição, passou a viver nas cavernas e entre os rochedos nas montanhas, sofrendo pela indiferença do rapaz. Motivada pela desilusão, começou a definhar. O desgosto por um amor não correspondido pode mesmo fazer trazer com que o apaixonado deixe de se alimentar. Eco, frustrada, comete o vagaroso suicídio anoréxico, até que só resta um fio de sua melancólica voz.

Narciso era arrogante e perverso, sem compaixão pelos que por ele se apaixonavam. Um dia enviou uma espada ao jovem Amantís, seu pretendente mais insistente. O rapaz se matou na soleira da porta de Narciso, conclamando aos deuses que vingassem sua morte, fazendo com que Narciso conhecesse a dor do amor não correspondido.

Numa das versões, a deusa Ártemis ouviu e decidiu atender o rogo. Noutras foi a deusa Némesis (a justiça distributiva e por isso mesmo, vingadora das injustiças). Há ainda autores que afirmam que quem o puniu foi a deusa do Amor e da Beleza, Afrodite, que nutria afeição por Eco. O fato é que Narciso foi condenado a amar um amor impossível!

Em Donacon, na Téspia, Narciso chegou a um lago claro, límpido como prata, águas essas que jamais foram tocadas por pastores ou rebanhos; rodeada de uma relva sempre verde, à sombra das árvores e protegida do ardor do sol. Seduzido pela beleza de tão aprazível lugar, Narciso, fatigado pela caça e pelo calor, foi ali repousar. Exausto, debruçou-se na grama da margem para matar sua sede e, deslumbrado pela imagem que viu, ficou paralisado: apaixonou-se por si mesmo! Que angústia! Engano fatal, Narciso mergulha no lago e desaparece sob as águas.

Diz o mito que, no lugar onde ele mergulhou, brotou uma linda flor que inclina suas pétalas para contemplar-se na água. Deram-lhe o nome de Narciso.

Este mito ilustra bem o risco do narcisismo, simbolizado pela vaidade, pelo solipsismo, que significa considerar exclusivamente o “eu” como única realidade.

Denominamos de “narcisistas” as pessoas que, egoisticamente, só pensam à partir de si mesmas, desprezando os sentimentos dos outros. A imagem refletida nas límpidas (ou diríamos turvas?) águas de nossa imaginação, não possui equivalência no mundo real. Imaturo, o narcisista vê “o Outro” com indiferença e desdém, tornado-se impossibilitado de penetrar no mundo alheio. Anseia por aplausos, subserviência e bajulação.

Há um grau razoável de amor-próprio saudável e até mesmo necessário para que se equilibre a percepção de nossas necessidades em relação às de outrem.


Mas em desmedida, a auto-suficiência torna o narcisista incapaz de amar outra pessoa.

Quanto a Eco, ela continua respondendo a todos que a chamam e conserva, até hoje, seu costume de dizer sempre a última palavra!

...palavra!
 

Saiba mais:

Ouça o mito de Eros & Psiquê – Sobre o Amor, em “Narrativas de mitos gregos (em áudio)”, neste site. É Eros (cupido) quem vai nos dizer qual é a condição sine qua non para que possamos ser felizes no amor.

Escola Superior de Direito Constitucional - ESDC
55 (11) 3663-1908 - esdc@esdc.com.br  -  www.esdc.com.br

 

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