Neste mês em que comemoramos
o “Dia dos Namorados”, versaremos sobre um dos comportamentos humanos
que, infelizmente, impedindo a verdadeira entrega que propicia a
felicidade no amor, promove solidão e angústia. Trata-se do narcisismo,
tão comum nos dias de hoje como sempre fora no passado. No relato
abaixo, consideramos as obras dos mitólogos Robert Graves, Rene Ménard e
do brasileiro Junito de Souza Brandão.
Eco era uma bela ninfa dos bosques e das fontes. Sabia de tudo o que se
passava nos bastidores do Olimpo; tagarela, era muito fofoqueira e, em
qualquer debate, buscava dar sempre a última palavra! A deusa do Amor e
da beleza, Afrodite se deleitava com toda futilidade dos mexericos
relatados por Eco.
Certo dia, Eco testemunha Zeus, o soberano-poderoso do Olimpo ir ao
encalço de mais uma conquista. Logo mais adiante, Eco se depara com a
deusa Hera à procura do marido. Esperta, Eco diz a Hera que Zeus acabara
de passar, procurando por ela e que seguiu pela direita. Hera fica entre
envaidecida e desconfiada por essa inusitada atitude de Zeus.
Assim que Hera se vai, Zeus, que tudo observava, fica extremamente
agradecido a Eco por tê-lo acobertado da furiosa esposa e a presenteia
com um precioso anel. Eco fica feliz da vida!
Não demora muito e a deusa Hera surge novamente para falar a Eco que não
encontrou o marido. Ao avistar o belíssimo anel no dedo da ninfa,
compreende o ardil e a penaliza dizendo que, à partir de então Eco
deixará de ser uma fofoqueira mentirosa! Faz com que a pobre Eco perca a
voz e passe somente a repetir as últimas palavras de tudo o que ouve. De
tanto se imiscuir na vida alheia, Eco não tem mais opinião própria.
Narciso, cuja palavra é derivada de nárke (entorpecimento,
torpor, daí os narcóticos), era filho da ninfa azul Liríope e do
Deus-Rio Cefiso.
O menino era tão belo, mas tão belo que a mãe ficou deveras preocupada
com seu futuro. Nessa cultura, uma beleza fora do comum sempre assustava
porque era provável que isso arrastasse o mortal para a hýbris, a
desmesura, a falta de medida, fazendo com que ultrapassasse o métron
(a justa-medida) tão cara aos antigos gregos. Embora a beleza fosse
outorgada pelos deuses, Narciso era mais belo até que os Imortais.
A mãe de Narciso, continuamente preocupada com o destino de um filho tão
belo, foi consultar o vidente Tirésias a fim de saber quantos anos
viveria o menino, e o mântico lhe disse: “Narciso viverá até uma
idade muito avançada, desde que nunca veja a si mesmo”. A mãe não
compreendeu muito bem a profecia, mas tranqüilizou-se.
Qualquer pessoa poderia, com razão, apaixonar-se por Narciso. Quando ele
mal chegou aos 16 anos, já deixara para trás uma trilha de corações
partidos de ambos os sexos. Era desejado pela Grécia inteira! Por conta
disso, tinha um orgulho obstinado de sua própria beleza, pois acreditava
que não havia ninguém à sua altura.
Certo dia a ninfa dos bosques, Eco avistou Narciso e apaixonou-se
perdidamente por ele.
Quando Narciso saiu para caçar cervos com seus amigos, Eco se escondeu e
o seguiu. Estava desesperada para falar com ele, mas a punição da deusa
Hera não lhe permitia ser a primeira a falar, e tudo quanto podia fazer
era repetir exatamente as últimas palavras que ouvia.
Narciso, percebendo a presença de alguém gritou: “Há alguém aqui?”
Aqui! Eco respondeu.
Essa voz surpreendeu Narciso, que não avistava ninguém. Então ele pediu:
“Venha!”
Venha! Repetiu Eco.
“Por que você me evita?” Gritou Narciso.
Evita?
“Vamos ficar juntos aqui!” Apelou o formoso rapaz.
Aqui! Disse Eco ao sair de seu esconderijo, correndo em direção a
Narciso.
Mas ele era frio, insensível e a repeliu empurrando-a violentamente.
“Morrerei antes que você se deite comigo!”, gritou ele, fugindo dela.
Comigo..., suplicou Eco.
Narciso se fora e ela, envergonhada pela rejeição, passou a viver nas
cavernas e entre os rochedos nas montanhas, sofrendo pela indiferença do
rapaz. Motivada pela desilusão, começou a definhar. O desgosto por um
amor não correspondido pode mesmo fazer trazer com que o apaixonado
deixe de se alimentar. Eco, frustrada, comete o vagaroso suicídio
anoréxico, até que só resta um fio de sua melancólica voz.
Narciso era arrogante e perverso, sem compaixão pelos que por ele se
apaixonavam. Um dia enviou uma espada ao jovem Amantís, seu pretendente
mais insistente. O rapaz se matou na soleira da porta de Narciso,
conclamando aos deuses que vingassem sua morte, fazendo com que Narciso
conhecesse a dor do amor não correspondido.
Numa das versões, a deusa Ártemis ouviu e decidiu atender o rogo.
Noutras foi a deusa Némesis (a justiça distributiva e por isso mesmo,
vingadora das injustiças). Há ainda autores que afirmam que quem o
puniu foi a deusa do Amor e da Beleza, Afrodite, que nutria afeição por
Eco. O fato é que Narciso foi condenado a amar um amor impossível!
Em Donacon, na Téspia, Narciso chegou a um lago claro, límpido como
prata, águas essas que jamais foram tocadas por pastores ou rebanhos;
rodeada de uma relva sempre verde, à sombra das árvores e protegida do
ardor do sol. Seduzido pela beleza de tão aprazível lugar, Narciso,
fatigado pela caça e pelo calor, foi ali repousar. Exausto, debruçou-se
na grama da margem para matar sua sede e, deslumbrado pela imagem que
viu, ficou paralisado: apaixonou-se por si mesmo! Que angústia! Engano
fatal, Narciso mergulha no lago e desaparece sob as águas.
Diz o mito que, no lugar onde ele mergulhou, brotou uma linda flor que
inclina suas pétalas para contemplar-se na água. Deram-lhe o nome de
Narciso.
Este mito ilustra bem o risco do narcisismo, simbolizado pela vaidade,
pelo solipsismo, que significa considerar exclusivamente o “eu”
como única realidade.
Denominamos de “narcisistas” as pessoas que, egoisticamente, só pensam à
partir de si mesmas, desprezando os sentimentos dos outros. A imagem
refletida nas límpidas (ou diríamos turvas?) águas de nossa
imaginação, não possui equivalência no mundo real. Imaturo, o narcisista
vê “o Outro” com indiferença e desdém, tornado-se impossibilitado de
penetrar no mundo alheio. Anseia por aplausos, subserviência e
bajulação.
Há um grau razoável de amor-próprio saudável e até mesmo necessário para
que se equilibre a percepção de nossas necessidades em relação às de
outrem.
Mas em desmedida, a auto-suficiência torna o narcisista incapaz de amar
outra pessoa.
Quanto a Eco, ela continua respondendo a todos que a chamam e conserva,
até hoje, seu costume de dizer sempre a última palavra!
...palavra!
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