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Aristófanes – A vitória do Discurso Injusto sobre o Justo

Luciene Félix
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana da ESDC
mitologia@esdc.com.br

No artigo anterior, versávamos sobre o comediógrafo grego Aristófanes (455a.C.-365a.C) e uma de suas peças teatrais, “As Nuvens”, onde explicita seu repúdio às novas pedagogias que insurgem em Atenas. Importante esclarecer que, errôneamente, Aristófanes elegeu Sócrates por alvo de sua crítica porque identificou nele o mais famoso representante daqueles indivíduos pelos quais nutria profundo desdém: os sofistas, sábios que mediante pagamento se dispunham a ensinar a arte da retórica a fim de vencer qualquer litígio. Analogamente, é como se, para desferir críticas às igrejas, apontássemos Jesus Cristo. Sócrates foi Mestre no ensino do instrumento e não responsável pelo mal uso que fizeram dele.

Angustiado, o velho e endividado Strepsíades lamenta que, à medida em que as fases da lua se alteram, vai se aproximando o prazo de vencimento das dívidas. Apesar de todo seu desespero, tanto o filho quanto seu escravo não fazem outra coisa senão dormir e peidar. Inútil lamentar-se pois, com a possibilidade de guerra, é fácil escravos deserdarem. Não conseguindo, ele mesmo, lograr sucesso no Pensatório de Sócrates, por lhe faltar preparo intelectual, insiste e louva ter, finalmente, conseguido convencer e matricular o filho. Strepsíades comemora e não esconde sua expectativa com o sucesso que a arte da retórica promete.

Ao filho, Fidípides, apresentam-se então os dois modos de dizer, ou seja, os dois tipos de Raciocínios/Discursos: Justo e Injusto. O primeiro a se manifestar é o Justo. Este, dirige-se ao Injusto pedindo que avance e se apresente aos espectadores, ele (o Injusto), que é tão convencido. O Injusto se prontifica a ir onde o Justo quiser e afirma que é ainda mais fácil derrotá-lo diante do público. O Justo, indignado pergunta quem é ele para vencê-lo. O Injusto diz ser um raciocínio. Sim, o fraco, provoca o Justo. Mas o raciocínio Injusto devolve dizendo que o fato do Justo pensar que é mais forte não o impede de derrotá-lo. O Discurso Justo indaga então com que artifícios e o Injusto fala que será com os artifícios de suas invenções.

O Discurso Justo confirma que os artifícios são as novidades da moda e aproveita então para criticar os espectadores, chamando-os de insensatos. Insensatos não, Sábios, proclama o Injusto. Desdenhando-o, o Injusto proclama que irá derrotá-lo contradizendo suas falas, afirma que, para começar, não existe justiça. Ultrajado, o Raciocínio Justo assevera que existe justiça entre os deuses. O Injusto aponta então, o fato de Zeus ter destituído o próprio pai, Chronos e não ter sido castigado.

Os dois Discursos se ofendem mutuamente: bicha, imbecil, desequilibrado, sem-vergonha, parricida, atrevido, antiquado e outros impropérios. Injuriado, o Justo promete que um dia os atenienses irão saber o que o Injusto ensina aos pobres de espírito! O Injusto o ironiza: quanta erudição... ao que o Justo responde: Quanta loucura... a sua e a da cidade que o sustenta, corruptor da juventude!

O Corifeu, interpõem-se entre os dois Discursos, pede que mostrem o que se ensinava aos rapazes de antigamente e o que se propõe a ensinar agora, nessa nova educação. Assim, o filho de Strepsíades, Fidípides, podia, finalmente, julgar e escolher qual dos dois deseja por Mestre.

O Coro afirma: Agora eles vão mostrar quem fala melhor, cheios de confiança na enorme habilidade de seus raciocínios, de seus pensamentos e de suas reflexões transformadas em sentenças. Chegou a hora de uma prova decisiva, aqui mesmo, desta sapiência em que os dois confiam para se atracarem num grande combate. O Corifeu, dirigindo-se ao Raciocínio/Discurso Justo pede: “Vamos, então; você, que enfeita os antigos com roupagens tão bonitas, fale com sua voz agradável e diga o que a sua natureza mandar”. Ao que o Justo discorre: “Então vou dizer como era a educação antiga, quando eu ganhava dinheiro ensinando a justiça e todos cultivavam a moderação (...) Sendo assim meu jovem (Fidípides), escolha confiantemente, a mim, o Justo; você aprenderá a detestar a praça pública, a detestar os banhos públicos, a corar diante de tudo que é indecoroso, a zangar-se quando riem de suas boas maneiras, a levantar-se de seu assento quando os idosos se aproximam, a não ser grosseiro com os pais, a não praticar qualquer ato vergonhoso, ofensivo ao pudor que é o seu ornamento; a não correr em direção a uma dançarina para evitar que, observando tudo isso de boca aberta, receba nela uma maçã jogada por alguma mulher depravada e perca a sua boa reputação; a não replicar a seu pai, com alusões desrespeitosas à idade dele, pois você foi posto neste mundo por seu pai. (...) Ele (o Raciocínio Injusto) o levará a achar decente tudo o que vergonhoso, vergonhoso tudo o que é decente (...).”

Pois “eu, o Discurso Injusto, recebi esta qualificação entre os pensadores porque tive antes de qualquer outro a idéia de falar contra as leis e a justiça. Esta arte tem um valor maior que qualquer outra, ela ensina a defender as razões mais fracas e fazê-las prevalecerem apesar de sua fragilidade (...). Veja, rapaz (dirigindo-se a Fidípides), os inconvenientes da moderação, e de quantos prazeres ela nos priva, com meninos e mulheres, com jogos, com comidas gostosas, com bebidas, com boas gargalhadas. Ao contrário, de que vale sua vida se você se priva de tudo isso? Digamos que você teve azar, amou, cometeu um adultério e foi apanhado em flagrante delito. Você está perdido porque não sabe falar. Mas se você ficar comigo vai gozar as coisas boas da natureza – pular, rir, não considerando coisa alguma vergonhosa. Se você for surpreendido em adultério, dirá ao marido que nada fez de mal; depois diga que o culpado é Zeus. De fato, se um deus se deixa vencer pelo amor e pelas mulheres, como você, simples mortal, pode ser mais forte que um deus?”

O Justo então protesta: “Mas como? Se um deus deixar que enfiem um nabo no traseiro do adúltero e se depilarem o traseiro dele com cinza quente [obrigar o adúltero a sentar-se em cinzas quentes era castigo usual], ele terá alguma palavra a dizer para provar que não é um “traseiro frouxo” *?

Como salienta a estudiosa Maria Amália Longo Tsuruda, doutora em Aristófanes pela USP, permitir-se ser penetrado era aviltante para um aristocrata grego, apenas os prostitutos e os escravos se prestavam a essa humilhante desonra, mediante vantagens, dinheiro ou presentes.

Sem preocupação alguma, o Injusto prossegue: “E se ele for um “traseiro frouxo”, que mal há nisto para ele?”. O Justo protesta: “Ou melhor, que lhe poderia acontecer de pior?”

O Injusto então provoca perguntando ao Raciocínio Justo o que ele dirá se for vencido nesse ponto. O Justo diz que ficará calado pois, se o indivíduo não se importar de ser um “traseiro frouxo” ele mais nada poderá fazer. Realmente, o que fazer quanto aos que não se importam com pudor, vergonha, respeito?

O Raciocínio Injusto fica satisfeito e pergunta ao Raciocínio Justo que espécie de homens são os advogados, os políticos, o próprio público? O Justo não titubeia em afirmar que são todos uns “traseiros frouxos”. Indignado, entrega seu manto: fui vencido prostitutos! Vencedor, o Raciocínio Injusto dirige-se a Strepsíades e pergunta se ele prefere levar seu filho de volta ou se quer que o ensine a discursar.

Strepsíades só pensa em burlar os credores e, ao dirigir-se a Sócrates orienta: “Ensine e castigue o rapaz e não se esqueça de afiar a língua dele dos dois lados: um lado para tornar ele capaz de enfrentar os pequenos processos, e o outro para as causas mais importantes (...). Viva o trambique, rei do mundo! Então vou gritar e berrar: coitados de vocês, agiotas, de vocês mesmos e do dinheiro emprestado! Vocês já não vão poder me fazer mal nenhum, agora que está sendo preparado para mim neste Pensatório um filho brilhante, uma língua com dois gumes afiados, uma fortaleza para me proteger, um salvador para minha casa, uma desgraça para meus inimigos, libertador do pai ameaçado por grandes males! Meu filho! Oba! Tenho de mostrar a minha alegria! Seu jeito é o de um homem preparado para negar tudo, para contradizer tudo. No seu rosto se lê perfeitamente: “Que tem você a alegar?”, e me anima esta maneira de parecer ofendido quando está ofendendo e maltratando os outros; conheço muito bem essas coisas! E nos seus olhos vejo esta maneira cínica de olhar! Agora trate de me salvar, já que você até hoje tem sido a minha perdição”.

Ao se ver sendo espancado pelo próprio filho, Strepsíades se arrepende amargamente de tê-lo orientando a dominar a arte da retórica pelo Raciocínio Injusto. “Você está dando porradas em seu pai, filho degenerado! Desalmado! Parricida! Destruidor de muralhas! Maior dos tarados!”

Quando Fidípides diz ter toda razão em fazê-lo, Strepsíades pergunta: “Como alguém pode ter razões para espancar o próprio pai?”

Fidípides promete que irá demonstrar que tem razões para espancá-lo e pede que escolha então entre os dois raciocínios (o justo e o injusto, velho gagá!) e avisa ter certeza de que vai convencê-lo: “Como é bom viver no meio de coisas novas e incrementadas, e desprezar as leis vigentes! (...) agora, que estou por dentro das idéias, raciocínios e meditações sutis. Me responda: quando eu era pequeno você batia em mim?” O pai esclarece: “Batia, para seu bem e porque eu me interessava por você”.

Ardilosamente o filho indaga: “Então me diga: não é justo que eu agora dê provas de interesse por você e lhe dê porradas, já que bater nas pessoas é sinal de interesse por elas? Ora, por que seu corpo deve ficar livre de surras e o meu não ficou? Está certo que as crianças chorem, e na minha opinião um pai também deve chorar. Chorar é mais natural nos velhos que nos moços, entre outras coisas porque as faltas dos moços são mais desculpáveis”. O pai, estarrecido proclama: “Mas em parte alguma a lei permite tratar o pai assim”. Fidípides argumenta: “Não foi um homem como você e eu que impôs essa lei, e não foi com palavras que ele convenceu os antigos? Por que não posso fazer também uma lei nova, determinando que os filhos podem bater também nos pais? Veja como os galos e outros animais que você conhece retribuem as pancadas de seus pais: em que eles são diferente de nós, senão no fato de eles não fazerem decretos?”

Strepsíades diz: “Já que você quer imitar os galos em tudo, por que você não come bosta e não dorme no poleiro?”. É tarde, Fidípides se empolga tanto no domínio da arte de argumentar que agora quer provar ao pai que ele talvez não esteja tão aborrecido por ter sido espancado e, diante do espanto do velho ameaça: “vou espancar a minha mãe!” Que é que você está dizendo? Este crime é pior que o outro!” E Fidípides: “Por quê? E se com o raciocínio injusto eu confundir você provando que tenho necessidade de espancar minha mãe?”

Concluindo, Strepsíades está atordoado: “Onde você quer chegar? Depois disso, nada impede você de se lançar no precipício onde são lançados os piores criminosos... é por causa de vocês, Nuvens, que estou neste beco sem saída, pois me entreguei completamente às senhoras”. O Coro discorda: “Você mesmo é culpado pelo que lhe acontece, porque praticou atos condenáveis”. Desolado, o velho lamenta: “Por que vocês não disseram tudo isso na hora própria, em vez de abusar da boa fé de um velho caipira?”. E o Coro finaliza: “Agimos desta maneira sempre que vemos numa certa pessoa a obsessão de práticas perversas, até lançá-la na desgraça, para ensinar-lhe o temor aos deuses”.

Fica o alerta de Aristófanes para a consciência de uma escolha fundamental ao proferir qualquer discurso: valorar ou não o raciocínio que prime pela ética. A isso chamamos Justiça.

* A tradução original do grego é "cu arrombado".

Saiba mais:

Aristófanes – As Nuvens, Só para Mulheres, Um Deus Chamado Dinheiro - Tradução do grego e apresentação: Mário da Gama Kury – 1995, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro.

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